A Farsa da Aceitação: Como a Romantização Sabota Direitos e Constrói uma Armadilha para a Vida Adulta
- Ana Olliveira
- 14 de nov.
- 4 min de leitura
A crescente visibilidade do autismo, impulsionada por figuras públicas e pela mídia, é uma faca de dois gumes. Se por um lado ela quebra estigmas, por outro ela cria uma narrativa dominante perigosa: a da romantização. Esta visão idealizada, focada no "anjo azul", no "gênio incompreendido" ou na "lição de amor", não é apenas ingênua; ela é politicamente paralisante e prepara uma armadilha cruel para os próprios autistas na transição para a vida adulta.
O "filtro do privilégio", que mostra apenas a jornada de quem tem acesso a tratamentos caros, mascara a realidade da maioria e sabota a luta por direitos de duas formas interconectadas: primeiro, anestesiando a urgência política, e segundo, criando expectativas irreais que sufocam o indivíduo.
Este é um dos efeitos mais cruéis da romantização: ela cria uma armadilha para o próprio indivíduo autista. A criança “anjo azul”, celebrada por sua “pureza” e “diferença”, cresce e descobre que o mundo adulto não tem espaço para essa versão idealizada.
A transição para a vida adulta é, para muitos, o momento em que a narrativa romântica desmorona e revela uma realidade marcada por expectativas impossíveis e um suporte profundamente inadequado. Talvez este seja o ponto mais crítico da romantização: ela funciona como um anestésico da consciência coletiva e política, transformando uma pauta urgente de saúde pública em algo tratado apenas como uma questão de “boas maneiras”.
A Política da Aceitação – O Anestésico Social
A romantização é politicamente conveniente. Ela age como um anestésico na consciência coletiva e estatal, desviando o foco da falta de estrutura para a falta de empatia. O problema deixa de ser o Estado falho e passa a ser o indivíduo "intolerante".
Isso sabota a luta por direitos de formas muito concretas:
Transforma Direitos em "Inspiração": A narrativa pública celebra a "mãe-guerreira" que "moveu mundos" para conseguir terapias para o filho. Isso joga a responsabilidade no esforço individual e na exceção. O político aplaude a história de superação e se sente desobrigado de agir, afinal, se ela conseguiu "com amor", o problema não é a fila de anos no SUS, mas a "falta de esforço" das outras famílias.
Reduz a Deficiência a uma Questão de Atitude: O foco no "jeito diferente de ver o mundo" exige "aceitação", não investimento. Para a família de um autista nível 3, não verbal e com comportamentos desafiadores, a "aceitação" não basta. Ela precisa de terapia intensiva, medicação de alto custo e suporte especializado. Se o público acha que o autismo é só "ser peculiar", ele não pressionará o governo por mais verbas para centros de reabilitação.
Mascara a Farsa da Inclusão Escolar: Vemos vídeos de colegas "acolhendo" o amigo autista. Isso é usado como prova de "inclusão". No entanto, a lei não exige "caridade" dos colegas; ela exige que o Estado forneça mediadores, salas de recursos e material adaptado. A romantização do "acolhimento" serve como cortina de fumaça para a falta de investimento real, absolvendo a gestão pública de sua responsabilidade legal.
Essa "consciência" superficial, que não se traduz em ação política, tem consequências devastadoras. E quem paga o preço mais alto por essa farsa é o próprio autista, quando a criança romantizada se torna um adulto para quem a sociedade não tem roteiro.
O Peso da Expectativa – A Armadilha da Vida Adulta
A criança "anjo" cresce. O mundo adulto, que não foi feito para ela, não tem espaço para a versão idealizada que a sociedade aprendeu a "aceitar". A romantização constrói dois mitos que se tornam uma prisão:
O Mito do Superpoder (A Síndrome de "Rain Man"): A mídia ensina que autistas nível 1 são gênios excêntricos (The Good Doctor). A sociedade espera um "superpoder" compensatório.
A Armadilha: O autista adulto sente a pressão de ser brilhante para "valer a pena". O autista "médio", que tem dificuldades sociais e não é um gênio da física, é visto como uma decepção. Isso invisibiliza a maioria, que luta contra a exaustão do masking (camuflagem social) apenas para manter um emprego comum.
O Mito da Inocência Eterna (A Infantilização): O outro lado é a visão do "anjo azul", o ser "puro" e assexuado.
A Armadilha: O autista adulto é tratado como criança, negando sua autonomia. Sua sexualidade vira um tabu, seus desejos são invalidados e sua capacidade de ter relacionamentos é ignorada. A sociedade que o via como "puro" se choca quando ele demonstra raiva, desejo ou comete erros — ou seja, quando ele age como um ser humano adulto e complexo.
A Colisão com a Realidade: O Mercado de Trabalho
É no mercado de trabalho que esses dois mitos colidem e se estilhaçam. A sociedade que espera o "gênio focado" é a mesma que o elimina na entrevista de emprego por "falta de habilidade social" ou por não fazer contato visual.
O ambiente de escritório (barulhento, socialmente complexo) é hostil. A "honestidade" autista é punida, não recompensada. O resultado são taxas alarmantes de desemprego e subemprego, mesmo entre autistas com alta escolaridade.
Conclusão: O Custo Real da Farsa
A romantização cria um duplo vínculo mortal: se o autista mascara bem suas dificuldades e é competente, a sociedade julga que ele não precisa de suporte ("é tão funcional"). Se ele não consegue mascarar e suas dificuldades são evidentes, ele é visto como um "fardo" ou "incapaz" (o "anjo" que falhou).
Em nenhum cenário, a ele é dado o direito de ser simplesmente um adulto com uma deficiência, que possui tanto potencialidades quanto necessidades reais de suporte.
Ao focarmos na "aceitação" em vez de direitos, investimento público e suporte estrutural, estamos falhando miseravelmente. Estamos celebrando as crianças autistas para, logo em seguida, abandonar os adultos autistas à própria sorte, presos entre a expectativa do gênio e a realidade do abandono.



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