A Vítima Invisível: Violência Doméstica Masculina e o Ponto Cego da Justiça
- Ana Olliveira
- 20 de out.
- 4 min de leitura
A Vítima Invisível: O Descaso da Violência Doméstica Contra Homens e o Viés de Gênero na Justiça
A sanção da Lei 11.340/2006, a Lei Maria da Penha (LMP), representou um marco civilizatório inegável para o Brasil. Ela foi forjada na urgência de combater uma epidemia histórica e estatisticamente comprovada: a violência de gênero contra a mulher, perpetuada em lares que deveriam ser refúgios. A eficácia de seus mecanismos, como as medidas protetivas de urgência e as varas especializadas, é um avanço que não pode ser relativizado.
Contudo, ao lançar um facho de luz necessário sobre a vulnerabilidade feminina, o sistema jurídico, a sociedade e a mídia criaram, por omissão, um ponto cego profundo: a violência doméstica perpetrada contra o homem.Este não é um artigo que busca minimizar a gravidade da violência contra a mulher, que é majoritária e frequentemente mais letal. Este é um artigo que questiona o silêncio ensurdecedor e o descaso sistêmico quando o agressor é uma mulher e a vítima, um homem.
Do ponto de vista estritamente jurídico, a Lei Maria da Penha é clara em seu objetivo. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) já pacificaram o entendimento de que a LMP se aplica exclusivamente à mulher em situação de vulnerabilidade baseada no gênero. Quando um homem é agredido, física, psicologicamente ou patrimonialmente por sua companheira, ele não é amparado por essa legislação especial.
O homem vítima deve recorrer à vala comum do Código Penal – registrar uma ocorrência de lesão corporal, ameaça ou injúria. Ele não dispõe, de forma célere e especializada, de medidas protetivas de urgência. Não há uma vara especializada para acolhê-lo. O aparato estatal que se move com eficiência (ainda que com falhas) para proteger a mulher, simplesmente não reconhece a sua contraparte masculina como uma vítima digna da mesma tutela emergencial.
Esse vácuo legislativo e procedimental é o primeiro sintoma do descaso. O segundo, e talvez mais perverso, é o cultural, refletido diretamente na mídia.
A mídia, em sua busca por narrativas de impacto, solidificou o arquétipo do "homem agressor" versus "mulher vítima". É uma representação que se ancora na realidade estatística, mas que, ao se tornar a única narrativa, apaga as exceções. O homem agredido não encontra espaço na imprensa, a não ser como uma anedota, um estereótipo cômico do "marido dominado". A sua dor é deslegitimada antes mesmo de ser ouvida.E aqui, paradoxalmente, entra o machismo. O mesmo machismo estrutural que vitimiza mulheres é o que silencia os homens.
O usuário questiona "porque tanto machismo em dar a cara como as mulheres em busca dos direitos". A resposta é que o código do machismo impõe ao homem o papel de provedor, de forte, de inabalável. O homem que admite ser agredido por uma mulher – especialmente se ela for fisicamente menor – está, aos olhos dessa estrutura, falhando em sua masculinidade. Ele não é apenas uma vítima; ele é um "fracassado".
As mulheres, com décadas de luta feminista, aprenderam a transformar a dor em pauta, a vergonha em união e a denúncia em ferramenta de mudança. Elas "dão a cara" porque construíram uma rede de sororidade e um entendimento coletivo de que a culpa não é da vítima. O homem não tem nada disso. A sua denúncia é solitária e, frequentemente, recebida com escárnio, inclusive nas delegacias. "Seja homem", ele ouve.
Esse cenário deságua no ambiente mais crítico: as Varas de Família e os julgamentos de divórcio.
É no litígio familiar que o viés de confirmação da Justiça se torna mais evidente. O sistema judicial opera, muitas vezes, sob a presunção de que a mulher é a parte vulnerável a priori. Alegações de violência feitas pela mulher são (corretamente) tratadas com seriedade imediata. Alegações feitas pelo homem são, com frequência, vistas com ceticismo, como "revanchismo" ou estratégia processual para obter a guarda dos filhos ou reduzir a pensão.
Quando um homem alega alienação parental – uma forma grave de violência psicológica – ele luta contra uma maré de preconceito. Quando alega violência patrimonial ou psicológica, suas queixas são minimizadas. A narrativa de que "a mulher sempre sai como vítima" no divórcio não é uma fantasia; é o reflexo de um Judiciário que ainda enxerga o conflito familiar sob uma ótica binária e de gênero, onde o homem é inerentemente o opressor e a mulher, a oprimida.
Negar a existência da violência doméstica contra homens não protege as mulheres; apenas perpetua uma visão distorcida da realidade. A violência não tem gênero, embora o gênero possa ditar sua frequência e forma.O que se clama não é a revogação da Lei Maria da Penha ou a diminuição de sua importância. O que se exige é o reconhecimento de que a vulnerabilidade pode, sim, ser masculina. O que se busca é isonomia no tratamento da dor.
Enquanto o Estado, a mídia e a própria sociedade insistirem em tratar a violência doméstica masculina como um tabu ou uma piada, continuaremos a falhar. A verdadeira equidade de gênero não se alcança protegendo apenas um lado da equação, mas garantindo que a Justiça não seja cega apenas para quem ela decide proteger, mas sim imparcial para todos que dela necessitam. A omissão em proteger o homem agredido é, em si, uma forma de violência institucional.



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